domingo, 3 de abril de 2011

Conhecendo A Judeofobia - 2ª Parte

 A Judeofobia 

JUSTIFICATIVA DO TERMO

 2ª Parte


            O sacerdote Edward Flannery revela que seu interesse pelo tema do ódio antijudaico nasceu quando descobriu um abismo que separa judeus e cristãos. "Como é possível – pergunta-se Edward Flannery  que o judeu, acabrunhado pela consciência da secular opressão que tem sofrido no mundo cristão, fale em igualdade de condições com o cristão, que está sinceramente convencido de que seu interlocutor outorga demasiada importância às perseguições?"[1]
         Tentamos aqui estender uma ponte sobre este abismo, permitindo a mais pessoas conhecer páginas muito obscuras da experiência humana e curiosamente pouco investigadas. Até 1879, esta forma tão peculiar de ódio nem sequer tinha nome. Neste mesmo ano, Wilhelm Marr cunhou o termo antissemitismo, com o qual se propôs neutralizar a conotação religiosa que poderia existir em antijudeu. O panfleto de Marr[2] advertia sobre o perigo da influência dos judeus na Alemanha e era um modo de exortar a desembaraçar-se deles com total independência das inclinações religiosas que os judeus pudessem exibir. Para os efeitos desta introdução, o importante é que a palavra que Marr elegeu tem vários defeitos.
         Em princípio, não há "semitas". Poder-se-ia aplicar a palavra em Paleologia ou em Antropologia. Pode-se falar de línguas semíticas, aquelas que se falavam no Oriente Médio antigo e das mesmas que hoje formam o hebreu, o árabe e o aramaico. Quem chamou essas línguas de semitas foi Arthur Schlözer, em 1781, baseando-se na classificação de idiomas que faz o décimo capítulo do livro de Gênesis. Portanto, houve grupos semitas na remota antiguidade. Mas supor que um judeu da Holanda, um do Iêmen e um da Etiópia pertençam à mesma "raça semita" junto com um árabe de Marrocos ou da Síria é, a todas as luzes, um absurdo. Em segundo lugar e mais importante ainda: pessoas contrárias aos semitas não apenas não existem, senão que jamais existiram. Nunca se criaram partidos, publicações ou ideias que combatessem aos "semitas". E mais, a palavra se presta a confusões, nas quais incorrem frequentemente representantes árabes. Em março de 1997, o chanceler egípcio Amer Musa respondeu a uma acusação perguntando: "Como vamos ser antissemitas se nós somos semitas?". O lamentável é que o termo cunhado pelo judeófobo Marr difundiu-se por toda a parte, ainda quando, três anos depois, um dos precursores do pensamento nacional judaico moderno, León Pinsker[3], sugeriu a palavra mais apropriada, judeufobia, para caracterizar o ódio em relação aos judeus. Judeufobia é mais precisa porque um novo prefixo assinala o verdadeiro destinatário desta aversão, o judeu, e no sufixo alude a seu caráter irracional. É certo que em psicologia fobia também responde a sua origem grega medo. Fala-se de ailurofobia (medo de gatos), nictofobia (medo da noite) ou claustrofobia (medo de lugares fechados). Porém, em ciências sociais, tem uma conotação mais próxima a ódio e não a temor, como em xenofobia: ódio a estrangeiros.
         A judeufobia não é uma forma de xenofobia, uma vez que os judeus não são estrangeiros nos países onde vivem. Como já dissemos, tampouco são uma raça. Adverte a respeito Jorge Luis García Venturini: "O termo racismo... resulta insuficiente e até equívoco para qualificar a judeufobia, pois o complexo mental e afetivo que a tipifica excede em muito o âmbito racial... reduzi-la a uma questão racial implica minimizá-la e até desnaturalizá-la"[4]. A judeufobia não é uma espécie de racismo. É um fenômeno singular e como tal vamos encará-lo.
         Oferecemos cinco justificativas ao termo judeufobia usado em lugar de antissemitismo. Estas incluem motivos históricos, semânticos e lógicos. Para o leitor que ainda não esteja convencido de qual seja a palavra mais desejável, acrescentarei um argumento a mais: o ideológico.
         O prefixo anti combinado com o sufixo ismo sugere uma opinião que vem a se opor a uma outra opinião, como em antimercantilismo, antidarwinismo ou antiliberalismo. Porém, a judeufobia não é uma ideia. Jean-Paul Sartre, em seu famoso livro sobre o tema, sugere que não permitamos ao judeófobo disfarçar seu ódio em "opinião". Na medida em que usemos antissemitismo, os judeófobos poderão adornar seus rancores com uma aura de critério racional, o que descaracteriza a irracionalidade da judeufobia.
         Muitos dos ensaios sobre o tema mencionam o fato de que o termo antissemitismo é inapropriado, mas não oferecem a alternativa que está ao seu alcance. Hyam Maccoby lamenta-se de que "seu uso tenha sido aceito tão universalmente"[5] e os poucos historiadores que optam pelo termo judeufobia não o fazem com a perseverança necessária. Entre tantos, cabe mencionar Robert Wistrich, Walter Laqueur, Edward Flannery, Zvi Yavetz, Jacob R. Marcus e Henry Weinberg[6].
         Em 1997, a Universidade de Harvard publicou o livro de Peter Schäfer sobre a atitude em relação aos judeus na antiguidade e, para a minha grata surpresa, seu título foi Judeufobia. O autor admite que no começo supôs que ele estava criando o termo. Ainda que tenha rastreado o termo até 1903 (um artigo de J. Halévy), lamentavelmente saltou o texto Auto-Emancipação de León Pinsker, que já em 1882 falava de judeufobia. A Pinsker devemos não somente a correta definição do ódio antijudeu como também uma via muito original para explicá-lo, a qual será resumida mais adiante (cap. 34).
         Yoram Hazony, em uma interessante exegese política do livro de Ester, consola-se do uso do termo antissemitismo, argumentando que embora "os judeus nunca tenham sido odiados por serem um povo semita... o fracasso de encontrar um termo mais significativo para a enfermidade vem a refletir o quão pouco a conhecemos".[7]
         Outro autor que se resigna a não encontrar solução para o problema semântico foi Samuel Sandmel, que finaliza sua introdução argumentando que em seu livro "usamos antissemitismo conscientemente, sabedores de quão errado é o termo".[i] Em nosso livro, não nos submetemos tão facilmente ao erro.
         Nossa impressão é de que a palavra antissemitismo tem prevalecido sobre a mais apropriada, judeufobia, porque ajuda a diluir a especificidade do fenômeno, como uma espécie de reação coletiva inconsciente tendente a não confrontar de modo direto e sem eufemismos uma enfermidade que envenenou por milênios o coração de milhões de seres humanos.
         Mas, quantos milhões? A pergunta foi claramente formulada por Fritz Stern em sua biografia de Bleichröder: "Tem sentido meter no mesmo saco Paul de Lagarde, que nos anos 1870 exortava ao extermínio dos judeus, e Jacob Burckhardt, que advertia que a visibilidade dos judeus os levaria ao desastre? Pode-se utilizar o mesmo termo para definir o fanático submerso em um mundo de fantasia calculada para matar e o homem que alberga uma suspeita latente em relação a seus amigos judeus e de quando em vez faz observações hostis a eles?". A resposta é que quem carrega estereótipos judeufóbicos não é necessariamente judeófobo.[8] É judeófobo quem ocasionalmente se permite uma inocente piada antijudaica? A judeufobia apresenta-se em vários níveis e o mais tênue deles, o mero preconceito nebuloso e abstrato, não é suficiente para encaixar-se na definição de "ódio".
         Ainda que o ódio contra grupos sempre existiu, o despeito contra os judeus é único. Os judeus foram odiados em sociedades pagãs, religiosas e seculares. Em bloco, foram acusados pelos nacionalistas de serem os geradores do comunismo e pelos comunistas de reger o capitalismo. Se vivem em países não judeus, são acusados de dupla lealdade; se vivem em país judeu, de serem racistas. Quando gastam dinheiro, são acusados de ostentadores; quando não o gastam, de avaros. São tachados de cosmopolitas sem raízes ou de chauvinistas empedernidos. Se se assimilam ao meio, são quinta-colunas; se não, são fechados em si mesmos.



[1] Edward H. Flannery, prefácio a sua obra Veintitrés Siglos de Antisemitismo, Editorial Paidós, Buenos Aires, pág. 13.
[2] A Vitória do Judaísmo sobre o Germanismo Considerada desde um Ponto de Vista Não Religioso. Ver Jacob Katz, Do Preconceito à Destruição, em inglês, Harvard University Press, Cambridge, 1982, pág. 260.

[3] León Pinsker, Autoemancipação, em alemão, Issleib, Berlim, 1882
[4] Jorge Luis García Venturini, Antisemitismo y Cristianismo, citado pelo autor em Reflexiones sobre la Cuestión Antisemita en la Argentina, Comentario, publicação do Instituto Judío Argentino de Cultura e Información, Buenos Aires, 1964, pág. 13.
[5] Hyan Maccoby, Antisemitismo e Antijudaísmo, em Pensamento Religioso Judaico Contemporâneo, em inglês, editado por Arthur A. Cohen e Paul Mendes Flohr, edições Charles Scribner's Sons, Nova Iorque, 1987, pág. 14
[6] Walter Laqueur o utiliza, entre outros, na página 23 de sua História do Sionismo (em inglês). Edward Flannery, ao final do primeiro capítulo de
A Angústia dos Judeus (em inglês), Paulist Press, Nova Iorque, 1985. Jacob R. Marcus, em Defesas contra o Antissemitismo (em inglês), pág. 52 de Ensaios sobre Antissemitismo, Jewish Social Studies Publication, Nova Iorque, 1946.
É notável que no Roget's Thesaurus, Penguin, 1975, pág.339, sob o título medofobia, entre as muitas fobias que são mencionadas, a única de nome inapropriado é antissemitismo (todas as demais levam o sufixo fobia).
[7] Yoram Hazoni, A Aurora, em inglês, Genesis Jerusalem Press, 1995, pág. 104.
[8] Samuel Sandmel, Antissemitismo no Novo Testamento?, em inglês, Fortress Press, Philadelphia, 1978.

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário